quinta-feira, 19 de agosto de 2010

De que poderíamos prescindir?


por Nicholas Kristof, Publicado em 28 de Janeiro de 2010

Dar a quem mais precisa parte do que temos pode ser uma experiência enriquecedora, como aconteceu aos Salwen. Descobriram-se melhor a eles próprios e melhoraram a sua vida familiar


Tudo começou com uma paragem num semáforo.

Em 2006, Kevin Salwen, escritor e empresário de Atlanta, ia de carro com a sua filha Hannah, de 14 anos, que tinha ido buscar a casa de uma amiga. Enquanto esperavam que o sinal caísse, viram de um lado um Mercedes coupé preto e do outro um sem-abrigo que mendigava comida.

"Pai, se aquele homem tivesse um carro menos bom, o outro podia comer uma refeição", disse Hannah num protesto. A luz caiu e seguiram viagem, mas Hannah era nova de mais para ser razoável. Sarnou o juízo aos pais com o tema da desigualdade e insistia que queria fazer alguma coisa.

"Que queres tu fazer?", perguntou-lhe a mãe. "Vender a nossa casa?"

Atenção! Nunca lembre um gesto nobre e grandioso a um adolescente idealista! Hannah agarrou na ideia de vender a luxuosa casa da família e doar metade da receita a instituições de caridade e de utilizar a metade restante para comprar uma casa de substituição mais modesta.

A família assim acabaria por fazer. O projecto - louco, impetuoso e muitíssimo comovente - está descrito num livro que pai e filha tencionam publicar no próximo mês: "The Power of Half", ou o poder da metade. É um livro que eu, francamente, teria receio de deixar num lugar onde os meus próprios filhos adolescentes o pudessem encontrar. Basta que uma criança impressionável o leia e eis que toda a família se vê no meio da rua.

Numa altura em que há enormes necessidades no Haiti e noutros locais, e em que tantas pessoas nos EUA tentam ajudar os haitianos mandando para lá tudo, de mensagens de texto a sapatos, os Salwen são um exemplo de uma família que se juntou para marcar a diferença - tanto para si própria como para as pessoas que tentam ajudar.

Salwen e a mulher, Joan, tinham sempre partido do princípio de que os filhos viveriam melhor numa boa casa. Mas depois de se terem mudado para uma mais pequena, onde havia menos espaço onde cada um se pudesse isolar nas suas actividades, a família passou a estar mais tempo junta. A casa mais pequena tornou-se, inesperadamente, uma casa muito mais favorável à coesão.

"Em essência, trocámos objectos por aconchego e estreitamento relacional", disse-me Salwen, que acrescentou: "Nem sequer consigo perceber por que razão não fazem todos o mesmo."

Uma das razões do estreitamento das relações familiares foi o complexo processo de resolver qual o destino a dar ao dinheiro. Os Salwen investigaram várias causas e instituições de caridade e acabaram por se decidir pelo Hunger Project, uma organização internacional de desenvolvimento, sedeada em Nova Iorque, com provas dadas em lidar com a pobreza no mundo.

Os Salwen prometeram 800 mil dólares para patrocinar programas sanitários, de microfinança, alimentares e outros, em cerca de 40 aldeias do Gana. Foram ao Gana com um executivo do Hunger Project, John Coonrod, também ele uma pessoa exemplar. Ao longo dos anos, ele e a mulher doaram tanto dinheiro, retirado dos seus modestos salários de funcionários de agência humanitária, que estão entre os maiores doadores de Nova Iorque na lista do Hunger Project.

A iniciativa dos Salwen não correu de maneira inteiramente pacífica. A Hannah conquistou rapidamente os pais para o lado dela, mas o irmão mais novo, Joe, era um rapaz norte--americano de sangue na guelra para quem não era intuitivamente evidente que a vida melhorasse com a mudança para uma casa mais pequena e com a doação de dinheiro aos pobres. Em minoria e ultrapassado pelos acontecimentos, Joe lá aquiesceu. Os Salwen estão também preocupados por algumas pessoas terem reagido negativamente ao projecto em que embarcaram, vendo-o como exibicionismo de superioridade. E que haja quem proteste por terem dado dinheiro ao Gana, quando há tantas pessoas necessitadas nos Estados Unidos.

Ao escrever o livro, dizem os Salwen, não tinham o propósito de levar as pessoas a venderem as suas casas. Estão cientes de que pouca gente é assim tão doida. Em vez disso, tinham por objectivo levar as pessoas a saírem da rotina da acumulação e a definirem-se pelo que dão, e não só pelo que possuem.

"Ninguém está à espera que as pessoas vendam as suas casas", diz Hannah. "Isso até é um pouco ridículo. Para nós, a nossa casa era apenas uma coisa sem a qual podíamos viver. Era grande de mais. Toda a gente tem excesso de alguma coisa, quer seja tempo, quer talento ou fortuna. Toda a gente tem a sua própria metade; só é preciso descobri-la."

Quanto a Kevin Salwen, está satisfeito com o que se passou desde aquele breve encontro no sinal vermelho. "Estou encantado por podermos ajudar outras pessoas e estou espantado com o que isso nos ajudou a nós."



Exclusivo i/The New York Times

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