segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um Rimbaud americano


África deixou de ser opção para o não-tão-maldito poeta depois da sua prematura morte, aos 27 anos. 40 anos depois da primeira publicação dos seus escritos, ainda se coloca a questão: a poesia de Jim Morrison sobrevive ao homem e ao mito?



1969 foi um ano agitado para James Douglas Morrison: The Doors editavam o seu quarto álbum, The Soft Parade, em que a creditação individual de cada faixa reflectia a desagregação progressiva de uma banda cujo vocalista se afundava cada vez mais no álcool, chegando a faltar a ensaios e a atrasar espectáculos. O desprezo que Jim Morrison parecia conferir ao seu modo de vida era mais do que evidente e reflectia-se também no seu aspecto — deixou crescer a barba, engordou e pôs de lado as famosas calças de cabedal que tinham ajudado a sua auto-proclamação como The Lizard King.



Os escândalos com a justiça eram frequentes, relacionados com acusações de atentado ao pudor e incitações à revolta coloridas por reacções Artaudianas. Morrison estava esgotado física e psicologicamente, como se todo o peso da morte iminente dos anos 60 se tivesse abatido sobre si próprio. Rui Pedro Silva, o autor de Contigo Torno-me Real (editado em 2003 pela Afrontamento e cuja edição internacional, de Março de 2008, foi distinguida com uma menção honrosa no Festival do Livro de Londres em Dezembro do ano passado) e um dos maiores investigadores da vida e obra de Jim Morrison, aponta os acontecimentos de 1969 como «uma caça às bruxas», da qual o vocalista dos Doors se tornou o bode expiatório: «Morrison não fez nada de especial que o levasse a tribunal. O seu peso contra-cultural é que foi levado ao banco dos réus». As acusações contra Morrison atingiram o seu pico justamente neste último ano da década de 60.



No entanto, nem tudo foi mau; o inevitável descanso a que Jim Morrison foi sujeito no que respeita à sua vida social e profissional fez com que se voltasse de novo para si próprio e para a escrita, que havia passado para segundo plano e teria mesmo sido negligenciada se a sua companheira, Pamela Courson, não o tivesse incentivado e até compilado a maior parte dos seus poemas: «Ela via-o primeiramente como um poeta, tal como ele [se via a si próprio]», explica Rui Pedro Silva, acrescentando que «ela era a âncora que ele necessitava para o acto solitário de escrita, mas com a certeza que estava psicologicamente acompanhado». Pamela acreditava piamente no talento literário de Morrison, e nesse mesmo ano de 1969 este editou, em edição privada, dois volumes contendo escritos seus. Estes haviam de se tornar históricos por terem sido os únicos que Jim Morrison publicou em vida.



Em 1970 a editora norte-americana Simon and Schuster publicava The Lords and the New Creatures (editado em Portugal pela Assírio & Alvim), que consistia na junção dos dois volumes publicados no ano anterior, contendo os títulos The Lords/Notes on Vision, cujo conteúdo se baseava essencialmente em descrições de lugares e pessoas, assim como em pensamentos teorizantes sobre o Cinema, e The New Creatures, já mais estruturado ao nível formal, no que respeita à sua natureza poética.



À morte prematura e misteriosa de Jim Morrison em Paris no ano seguinte, seguiu-se a de Pamela Courson, em Abril de 1974, e com ela parecia desaparecer também o interesse demonstrado pela poesia do Rei Lagarto. No entanto, e após uma luta controversa pelo legado de Morrison, foram os pais de Pamela que ficaram detentores dos direitos de autor de toda a obra literária do músico; no seu testamento, Jim Morrison deixava tudo à companheira, e, depois da morte desta, tudo passou para a posse dos pais, que com a ajuda do fotógrafo amigo de Jim, Frank Lisciandro, publicaram Wilderness — Escritos Inéditos (1988) e An American Prayer (1990), ambos com edição portuguesa da Assírio & Alvim, que se tornaram rapidamente best-sellers.



Hoje, Jim Morrison figura na galeria dos mais conceituados poetas anglo-saxónicos, ao lado de nomes como Dylan Thomas e Yeats. Coloca-se, porém, uma questão pertinente: até que ponto o valor literário atribuído à sua obra poética não é inflacionado por todo o mito construído em redor da sua morte prematura e popularidade quase universal? É certo que Kerouac se tornou numa das maiores vozes da consagrada Beat Generation apesar de os seus livros terem sido inicialmente comentados como «não sendo literatura, e sim dactilografia», mas será que a escrita de Morrison vive por direito próprio, ultrapassando o estatuto de «lenda» do próprio autor? Ou será que a genialidade deste era tal que os seus escritos sobreviveriam mesmo se não tivesse havido The Doors, nem mistérios em Paris, nem peregrinações a Père Lachaise?



É um mito, sim — mas é mesmo bom?



Rui Pedro Silva tem a certeza que sim. «Entrevistei ao longo dos anos as pessoas do staff original dos Doors, amigos íntimos de Morrison e artistas internacionais, e todos relevam muito mais a inteligência, profundidade e carácter do homem (Jim Morrison) do que os míticos excessos que muitas vezes escondem grandes exageros, manipulações e não raramente se transformam em histórias falsas», sublinha o autor de Contigo Torno-me Real. Silva salienta ainda que a poesia de Morrison recebeu críticas muito favoráveis, ainda que na sua maioria póstumas: «A poesia de Jim Morrison tornou-se popular depois da morte dele e essa foi a grande frustração da sua vida, pois ele via-se como um poeta, não como um sex symbol ou outro rótulo fútil que nada exprimisse a sua arte na escrita».



O lado B do álbum An American Prayer, o único registo comercializado de poesia recitada pelo próprio Jim Morrison, abre com Curses, Invocations, em que Morrison recita: «Words dissemble, words be quick/ Words resemble walking sticks/ Plant them they will grow/ Watch them waver so/ I'll always be a word man» — a organicidade da sua estreita relação com as palavras nunca precisou de ser comprovada, e se os seus escritos ainda vivem, 40 anos depois, também certamente não necessitará de o ser a sua relevância para a poesia contemporânea.



Ana Leorne

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