quinta-feira, 27 de agosto de 2009

(Em memória do Capitão Salgueiro Maia e do cantor José Afonso)

Conheces o gosto da anona? E o cheiro do incenso em flor nas noites húmidas? Talvez. Mas com certeza não serás capaz de os explicar. Nem eu nem ninguém. Existem coisas assim: os sabores, os cheiros, as cores, os sentimentos... Há muitos milha­res de palavras, mas nenhumas são suficientes para dizer aquilo que só quando se sente se sabe como é. Eu gostaria de inventar as palavras que faltam à nossa Língua, a todas as línguas do Mundo, para falar de Abril. Em Portugal. Num dia com cravos a florir nas espingardas, porque ninguém queria usá-Ias para matar.

Estavam cansados da guerra, uma guerra má como todas as guerras. Em Angola e em Moçambique e na Guiné. Era o medo em Portugal. Havia verdades que era proibido dizer. Havia muita gente que mal tinha que comer. Havia muita gente sem casa onde morar.

Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Os homens que mandavam neste país, e que não queriam que ele mudasse, talvez dormissem àquela hora sem sonhar com o que ia aconte­cer. No rádio, uma canção começou: "Grândola, Vila Morena". (Uma revolta que começa com uma canção, sobretudo uma canção como aquela, tem de ser uma revolta boa). Era o sinal combinado. Os militares saíram dos quartéis para dizer ao governo que não o suportavam mais, mas ainda não se sabia quantos portugueses estavam no mesmo lado. Logo se perce­beu que eram quase todos, afinal.

E a revolução tornou-se numa festa tão bonita que esse dia foi um dos mais belos da História de Portugal. Foi uma alegria tão grande que se chegou a pensar ter valido a pena tanto tempo de sofrimento e medo para que ela acontecesse...

Mas não! A água mais apetecida é a que se bebe depois de uma longa e penosa sede, e ninguém se deixa estar dois ou três dias sem beber só para ter um gosto enorme ao beber...

Se eu pudesse inventar as palavras que faltam à nossa Língua para dizer isto melhor, nunca mais haveria alguém capaz de duvidar de como foi lindo aquele dia, nunca mais nin­guém haveria de permitir que alguma coisa, neste país, se parecesse com as coisas ruins de antes. E muito depressa se mudaria o que ainda não houve tempo de mudar.
José Afonso

No tempo da vergonha, ele era a paz,
E tinha a cor dos cravos já na voz.
Ninguém como ele foi então capaz
De ser tão puramente todos nós.
Salgueiro Maia

“Aqui tendes a herança que vos dou,
Um caminho onde todos são iguais.
Eu voltarei a ser isto que sou:
Um português igual a tantos mais.”

(Na manhã de 25 de Abril de 1974, faltou-me um abraço que certamente seria imenso... Como meu Pai gostaria de ter vivido essa manhã de todas as manhãs!...)

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