terça-feira, 18 de agosto de 2009

O medo à morte é um medo ao Nada


“Não acredito em Deus, mas sinto-Lhe a falta”. Começa assim o último livro do romancista britânico Julian Barnes, autor de obras como Amor, etc. ou Arthur & George.Nele, o escritor, que até hoje se considera agnóstico mas que antes foi ateu, decidiu enfrentar o medo da morte perguntando-se: como pode um agnóstico temer a morte se não acredita que haja uma vida depois desta? Como se pode ter medo do Nada?A partir destas perguntas, que o jornal The New York Times publicou, Barnes elaborou uma elegante memória da sua vida e uma meditação sobre Deus e a tanatofobia, que não deixa ninguém indiferente.Sob o título “Nothing to be frightened of” (Nada a recear), a obra é um percurso pela vida familiar, uma troca de ideias com o seu irmão (o filósofo Jonathan Barnes, uma reflexão sobre a mortalidade e o medo da morte, uma comemoração da arte, uma dissertação sobre Deus e uma homenagem a outro escritor, o francês Jules Renard.

Desassossego e tanatofobia
Barnes, que sofre de tanatofobia (medo da morte persistente, anormal e injustificado), pensa diariamente na sua morte ou imagina-se em situações em que morreria, como apanhado entre as mandíbulas de um crocodilo ou num navio que se afunda. A morte cria-lhe um grande desassossego: teme a diminuição da energia, que a fonte seque, que se desvaneça a luz. “Olho em redor, as minhas amizades, e posso ver que a maioria delas já não são amizades mas, pelo contrário, a lembrança da amizade que tivemos”.Barnes, que viveu a velhice dos seus pais e a sua morte, escreve também que “apesar de na vida nos libertarmos dos pais, eles parecem reclamar-nos na morte”.Mas, para o escritor, a fé religiosa não é uma opção para todo este desassossego e diz “não tenho fé a perder… Nunca fui baptizado nem frequentei a catequese aos domingos. Nunca fui à missa… e entro constantemente nas igrejas só por razões arquitectónicas”.

Religião moderna
Para Barnes, a religião cristã perdurou unicamente porque é “uma bela mentira… uma tragédia com um final feliz”. Mas as alternativas modernas à fé cristã também não o confortam.O autor fala, por exemplo, das terapias como formas contemporâneas de religião. Delas diz: “o céu secular moderno da auto-realização, do desenvolvimento da personalidade, das relações que nos ajudem a definir-nos, de um trabalho com certo status… o acumular de aventuras sexuais, de idas ao ginásio, de consumo de cultura. Tudo isto nos aproxima da felicidade, não é verdade? Este é o mito em que queremos acreditar”.Barnes só encontra consolo na ciência, que diz: todos estamos a morrer. Até o sol. O homo sapiens está a evoluir para novas espécies às quais não importa quem fomos, nem qual foi a nossa arte ou a nossa literatura. Qualquer saber cairá no completo esquecimento. Cada autor chegará a converter-se num autor não-lido.Definitivamente, diz Barnes, as pessoas podem temer a sua própria morte mas, na verdade, o que somos? Simplesmente um conjunto de neurónios. O cérebro não é mais que carne e a alma é, simplesmente, “um relato que o cérebro conta a si mesmo”.

Entrar e sair
Quanto à individualidade, esta não é mais que uma ilusão. Os cientistas nem sequer encontraram evidências da existência do “eu”, assinala Barnes, que é algo que dizemos a nós mesmos. Não criamos pensamentos, mas os pensamentos criam-nos a nós próprios. O “eu” que tanto amamos, só existe na gramática.Barnes afirma, por outro lado, que não existe separação alguma entre “nós” e o universo. Somos só matéria, unidades de “obediência genética”. A sabedoria, segundo ele, consistiria em assumir isto e em “não pretender mais nada, em descartar o artifício…” Da mesma forma que os artistas, quando atingem a maturidade, ficam com a simplicidade.Assim entra o autor na idade adulta, com estas reflexões sobre a mortalidade humana e a maneira de a enfrentar, conversando com os leitores sobre o medo mais universal, segundo o Washington Post.“A morte é para mim o único aspecto espantoso que define a vida. A menos que não estejamos completamente conscientes dela, não é possível chegar a compreender em que consiste a vida, a menos que se saiba e se sinta que os dias de vinho e rosas são limitados, que o vinho azedará e as rosas murcharão na sua água pestilenta antes de tudo ser abandonado para sempre, não haverá contexto para que estes prazeres e curiosidades nos acompanhem no caminho para o cemitério”.Enfrentar a realidade da morte é tão impactante, que Barnes assegura invejar as pessoas que o fazem com fé. Certamente, aqueles que desfrutam do dom da fé religiosa contam com uma vantagem face aos que a não têm. O crente moribundo atravessará uma porta de entrada, enquanto que o resto dos mortais verão na morte só uma porta de saída.

Yaiza Martínez


A MORTE AFLIGE O HOMEM
A morte é fonte de dramas, interrogações, medo, angústia, revolta.

Acima: Pormenor de pintura hindu representando Kali, a deusa associada à destruição e morte

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